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Recentes Casos de Bebidas Contendo Soda Cáustica

18 de março de 2013

O post de hoje vai ser um bem diferente do usual do blog. Se vocês estão esperando o esclarecimento de algum mito ou boato sobre alimentos, aguardem até a próxima publicação.

Recentemente, tivemos alguns casos na mídia de bebidas que foram envasadas com soluções de limpeza contendo NaOH (soda cáustica) e outros produtos danosos à saúde. Os mais famosos foram o caso do Toddynho (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/985837-toddynho-tinha-ph-parecido-com-o-de-soda-caustica-afirma-laudo.shtml) e do Ades (http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/03/anvisa-suspende-fabricacao-e-venda-dos-produtos-com-soja-da-ades.html). Esses casos assustaram bastante principalmente pelo principal público-alvo dos dois produtos: crianças (Toddynho) e idosos (Ades). Fiquem tranquilos que dessa vez o comentário não será favorável às empresas, muito pelo contrário. Só vou esclarecer primeiro as principais causas da contaminação para depois expressar meu manifesto sobre o assunto:

ades_brancadeneve

O fato é que o NaOH não é utilizado como ingrediente, aditivo ou coadjuvante na produção das bebidas citadas (se é que o seja para algum alimento em absoluto*). Diferentemente do que vi em alguns comentários por aí, essas indústrias não utilizam o composto para evitar a formação de natas no produto nem como antimicrobiano ou conservante, já que seu uso para esses fins não é permitido pela Anvisa. A soda cáustica é, na verdade, muito empregada (por seu baixo custo e alta eficiência) como um dos agentes nas soluções de limpeza das linhas de envase, agindo principalmente para remover certas substâncias que não são solúveis em água, como lipídeos.

No caso das grandes empresas (que com certeza incluem a PepsiCo e a Unilever – produtoras do Toddynho e do Ades, respectivamente) costuma-se utilizar um sistema de limpeza chamado CIP – “cleaning in place”. Simplificando, o método funciona mais ou menos assim: corta-se a alimentação dos ingredientes, que é substituída por diversas soluções de limpeza e desinfecção (ácidos, bases, clorados, etc), mantendo as linhas de produção e envase funcionando normalmente, e descartando-se o resultado. Dessa forma, tem-se uma limpeza contínua, rápida e prática, já que podemos limpar diversos equipamentos (tubulações, válvulas, trocadores de calor, bombas, etc) sem a necessidade de desmontar toda a estrutura. Após as soluções, a linha é alimentada com água até que o resultado final seja 100% água (enxágue), para depois poder processar os ingredientes para a próxima produção (lembrando de descartar os primeiros produtos, que saem “aguados”).

A implementação, manutenção e funcionamento de um sistema CIP requerem inúmeros controles (tanto automáticos quanto manuais) justamente para evitar contato das soluções de limpeza e desinfecção com o produto em processamento. Por isso que, quando nos deparamos com uma notícia desse tipo, o problema geralmente está associado a uma única linha de produção e provavelmente atrelado à falha humana.

Além disso, como a produção nessas linhas é muito rápida, é comum que sejam produzidos milhares de litros antes que o problema seja identificado, os quais podem chegar a ser comercializados. Lembrando que as análises de rotina nas empresas nem sempre são capazes de identificar a mistura de soluções de limpeza em suas bebidas, já que isso não faz parte de seus objetivos. Nesses casos, é importante que a empresa tenha um bom sistema de rastreabilidade, para que seja capaz de identificar quais os lotes com problema que devem ser recolhidos – o chamado recall.

Por mais que uma concentração de 2,5% de NaOH possa parecer pouco, já é suficiente para causar graves problemas de saúde. A soda de fato será neutralizada pelos ácidos do estômago, mas até lá (boca, faringe, esôfago) o estrago pode ser grande, causando queimaduras, irritação, ânsias e/ou enjoos. Por isso, quem ingeriu as bebidas dos lotes contaminados deve procurar ajuda médica imediatamente – além de, é claro, procurar na justiça uma indenização por parte da empresa. E quem comprou produtos, mas não chegou a consumir, deve comunicar à empresa para que, no mínimo, efetue a troca.

Agora, queria deixar aqui um desabafo. Como recém-formado e desempregado, eu percebo uma grande desvalorização do profissional engenheiro de alimentos por parte do mercado. Muitas empresas preferem contratar tecnólogos, agrônomos, nutricionistas, veterinários, farmacêuticos, biólogos, químicos ou engenheiros de outras especialidades (mecânicos, agrícolas, de produção, etc), como responsáveis pelo processamento, segurança e qualidade de alimentos em suas indústrias. Não desmerecendo essas profissões, mas em geral os mesmos não estão qualificados para lidar com a complexidade de certas áreas da indústria de alimentos. Talvez se essas empresas passassem a valorizar mais a nossa classe, não teríamos que nos deparar, com tanta frequência, com notícias como as duas acima.

*Correção: existem alguns poucos produtos que empregam soda cáustica em parte de seu processamento, como no descascamento de alguns vegetais e na produção de extrato de levedura. Sempre com o cuidado de que não pode sobrar NaOH residual no produto final.

6 Comentários
  1. Acho ótimo esse tipo de esclarecimento. Essas situações envolvendo alimentos (bebidas, no caso) são realmente alarmantes, pois DIRETAMENTE danosas para a saúde. A soda cáustica pode causar queimaduras nas mucosas, imagine o pânico!!!
    Como você mesmo disse, só um engenheiro de alimentos poderia dar uma explicação tão clara do problema! E, é claro, estar mais atento ao processo para que não aconteça de novo. Tem que haver valorização SIM!
    Vou compartilhar o post!

  2. Alan Diego Paiva permalink

    Parabéns, sou tecnólogo em alimentos e pós graduando em segurança alimentar, sei bem o quanto isso é importante quanto informação para o consumidor.

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