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Carne Mal-Passada Sangrando

8 de abril de 2014

Durante minha infância, sempre que a família resolvia fazer churrasco, ocorria o seguinte embate: “picanha bem-passada” x  “picanha mal passada”. É claro que nunca chegava-se a um consenso e o churrasqueiro acabava tendo que fazer os dois tipos para agradar a todos. Uma das frases que mais se ouvia era: “eu que não vou comer essa carne sangrando!”

 


 

Na verdade, em geral não há sangue na carne. Mas antes de eu explicar o porquê, vocês sabem, exatamente, definir o que é carne? Eu falei um pouco sobre isso no post das jujubas: o conceito biológico se refere ao tecido muscular dos animais – inclusive do homem; já do ponto de vista alimentício, isso pode ser estendido ao conjunto de partes comestíveis dos animais, incluindo órgãos (como o fígado), e também seus derivados (frios e embutidos), mas excluindo produtos como leite, ovos e mel (não vou entrar aqui no mérito da “carne de soja” e da carne de laboratório). De qualquer forma, a grande maioria das carnes que comemos são mesmo provenientes dos músculos, principalmente no Brasil, onde outros órgãos e vísceras não costumam fazer parte da gastronomia para a população em geral. Apesar de haver bastante variação entre os diferentes tipos de carne, a maior parte da sua composição é água (~75%), seguida de proteínas (~20%) e gorduras (~2%).

O que ocorre é que os animais possuem em seus tecidos musculares uma proteína globular contendo ferro, chamada mioglobina, que capta oxigênio a fim de auxiliar na geração de energia para realizar certas atividades físicas. Essa proteína está intimamente ligada à coloração da carne, dependendo do estado de oxidação do ferro (Fe2+ – ferroso ou Fe3+ – férrico) e das moléculas ligadas a ele. Por exemplo, na carne bovina in natura, a mioglobina está reduzida (Fe2+) e apresenta cor púrpura, encontrada nos produtos embalados à vácuo. Quando ela se associa ao O2, forma a oximioglobina e adquire um tom vermelho-vivo, muito apreciado pelos consumidores. Entretanto, a exposição prolongada pode levar à oxidação (Fe3+) do composto, formando a metamioglobina, que é marrom-escura – uma tonalidade indesejada.

Para solucionar esse dilema, alguns produtores embalam o alimento em atmosferas modificadas com excesso de CO, o qual se liga à mioglobina formando um produto estável e de coloração agradável. Existem ainda muitas outras possibilidades: quando cozinhamos bem uma carne, a proteína é desnaturada e adquire uma coloração marrom-acinzentada; entretanto, no processo de cura (=adição de nitritos e nitratos, sal e especiarias, muitas vezes seguida de cozimento), ocorre a ligação do grupo nitroso (NO) ao ferro, resultando na nitrosomioglobina, que é rosa – esse é o caso do presunto, por exemplo. Quando há proliferação de certos micro-organismos no alimento, pode ocorrer a ligação de H2S à mioblogina, gerando a sulfomiglobina, que é verde – um bom indicativo de que a carne está estragada. Enfim, acabei me empolgando e indo bem longe nesse assunto, mas o ponto que eu quero passar é como a mioglobina pode afetar a cor de uma carne.

Nesse contexto, qual seria a diferença entre carne vermelha e branca? Intuitivamente, as pessoas acabam associando a primeira aos mamíferos e a segunda a todos os outros animais, mas não é bem assim. Existem várias exceções: avestruzes e atuns possuem “carne vermelha” e coelhos possuem “carne branca”, por exemplo. Em geral, animais grandes e/ou ativos costumam necessitar de maiores reservas de oxigênio e, portanto, possuem mais mioglobina, o que torna suas carnes mais escuras, chamadas popularmente de “vermelhas” – caso dos bois. Às vezes, podemos encontrar muitas variações dentro de uma mesma espécie, de acordo com variáveis como idade, sexo, raça, alimentação e grau de atividade física. Mesmo dentro de um único indivíduo pode haver certa variação: um bom exemplo é o frango, que tem o peito branco – por quase não exercitar o voo -, mas as coxas escuras – por ciscar.

Legal, mas o que é que tudo isso tem a ver com o sangue? Na verdade, nada, e é exatamente esse o ponto deste post. Isso porque o sangue do animal fica principalmente em suas veias e artérias, e não nos tecidos musculares. Pegando novamente o exemplo do boi: durante o abate, o animal sofre uma sangria, na qual seus vasos da garganta são cortados a fim de se expelir o máximo de sangue possível, já que o líquido promoveria a putrefação nos cortes posteriormente. Esse processo é feito com o boi já inconsciente, porém ainda biologicamente vivo para que o coração ajude a bombear o sangue para fora, eliminando-se mais de 60% desse. O restante fica retido em locais como o próprio coração e os pulmões, mas definitivamente não irá para a carne. Já o sangue eliminado geralmente não é utilizado para a alimentação (a não ser em especialidades étnicas como o chouriço), mas pode ser aproveitado industrialmente para a fabricação de diversos produtos.

Tá bom, mas o que escorre do bife mal-passado então? Na verdade, quando cozemos uma carne, rompemos a estrutura celular das fibras musculares, liberando água com mioglobina, que é um líquido até que bastante semelhante ao sangue. A confusão ocorre principalmente porque o sangue também tem uma proteína, a hemoglobina, que tem estrutura, aparência e funções (e nome!) semelhantes às da mioglobina. De qualquer forma, não existe nenhum problema em comer carne mal-passada, desde que ela tenha sido assada o mínimo suficiente para eliminar as bactérias patogênicas e eventuais protozoários ou até mesmo vermes parasitas que podem estar presentes no alimento. Por outro lado, carnes assadas excessivamente também podem ser perigosas por conta da eventual formação de nitrosaminas, que são carcinogênicas. No caso do churrasco, também deve se observar certa distância entre a brasa e a carne, pois a fumaça pode contaminá-la com hidrocarbonetos aromáticos policíclicos.

 

Fontes:

 

7 Comentários
  1. isabela permalink

    Nunca mais direi “o sanguinho” do churrasco =(
    Texto muito bom Menchik!!! Bem esclarecedor, como sempre =D

  2. Muito legal! Lembrei do presunto de parma que vimos no supermercado, com uma cor duvidosa, meio esverdeada (sulfomiglobina?)… 😛
    É surpreendente que aquilo não seja sangue!!!! Eu NUNCA pensaria nisso.
    Ainda assim, continuo preferindo carne ao ponto / bem-passada.

  3. Sempre me perguntei o que seeia o líquido avermelhado da carne mal passada… sangue eu sabia que nao era porque não tem o típico gosto de ferro. Agora a duvida está esclarecida. E também gostei de saber porque há carne branca e vermelha.

  4. Manel permalink

    Muito interessante, obrigado por esse momento.

  5. Thaiana permalink

    Gostaria de saber como seria medido “esse cozimento mínimo necessário” para matar os agentes patogênicos, pois costumo somente selar os meus bifes na frigideira pra formar aquela crosta dourada, gosto dp interior da carne bem mal passada.
    E também queria saber se há algum risco em comer pratos compostos por carne crua, como o carpaccio, ou o steak tartar.
    No caso desses, as bactérias são eliminadas pelo congelamento ou algo parecido?
    Tenho a mesma dúvida quanto ao peixe cru da culinária japonesa, exite algum método usado para a higienização dos filés de peixe??
    Parabéns pelo site, muito interessante e informativo!!

    • Sempre tive a mesma dúvida, como proceder com a carne para eliminação de agentes patogenicos/deteriorantes, sem que se ocorra a quebra total das enzimas (no caso, preparação mínima necessária). Agradeço se alguém pudesse me responder.

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